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segunda-feira, abril 12, 2004

CINDERELA

A fada madrinha bem que tentou, mas anda muito desatualizada, os tempos são outros. A carruagem virou abóbora há tempos. Disso todo mundo sabe. Virou abóbora e Cinderela caiu de bunda no chão. Agradeceu por ainda não ter conseguido juntar dinheiro para colocar silicone ali, poderia ter perdido as próteses com o tombo. O príncipe não viu nada, estava explicando pro porteiro quem ele era, seu sobrenome, dizendo que o pai era político, lhe passou uma nota de 50 "pilas" discretamente para facilitar a sua saída antes de pagar a conta. Jurou que voltava em seguida. Depois foi puxado para um canto por uma loira muito a fim de sexo casual. Não resistiu. Foda-se a Cinderela.
E isso foi há muito tempo. Desde então Cinderela trabalha duro prá esquecer o que poderia ter sido e não foi. Na verdade já esqueceu. Se preocupa tanto com as contas no final do mês que nem lembra mais como foi o baile.
O sapatinho de cristal foi perdido um dia desses na subida da escadaria da favela enquanto Cinderela fugia apressada dos tiros. Foi roubado por uma quadrilha especializada antes que o príncipe o visse. Também, ele já tinha passado pelo sapato sem notá-lo. Ele também subia as escadas apressado, não pensava na Cinderela mais. Precisava de bagulho pro seu barato de Sábado. O sapato foi vendido no mercado negro, derretido e transformado num cachimbo pra crack. O dono do cachimbo não mora no morro, isso todo mundo sabe. Ele poderia até ser o pai do príncipe.
Cinderela está esquecida e na miséria. Daria tudo para ter uma madastra malvada e um par de irmãs postiças que lhe oferecessem casa e comida em troca de um regime de escravidão. Perde horas no metrô até chegar ao trabalho do outro lado da cidade. Não tem carteira assinada e não ganha vale transporte, mas não se sente no direito de reclamar. É uma escrava de uma família que vive num apartamento de três quartos no Leblon. Aos Sábados eles recebem os amigos e servem lagosta e champagne. Cinderela trabalha até mais tarde. Não reclama. Todas as suas vizinhas estão desempregadas e acabaram trabalhando no tráfico ou se prostituindo para segurar as pontas. Ela dá duro na casa da patroa. Volta pra casa tarde e com medo. Muito medo. O príncipe foi para Nova York fazer um curso de teatro e nunca mais voltou. A cidade ainda era maravilhosa mas andava muito violenta para ele. O reino agora é governado por um sapo. O príncipe, apesar de formado em ciências políticas era uma figura muito frágil e estava muito distraído com as coisas que considerava "boas da vida" pra pensar em assumir qualquer responsabilidade. Que venha um sapo e coache bem alto, pedia o povo. Diziam que já estavam cansados de príncipes covardes. Talvez Cinderela ainda pudesse ser salva pelo sapo. Quem sabe?
A abóbora apodreceu e não servia nem pra fazer doce. E mesmo se não tivesse apodrecido, quem teria tempo pra isso nesses dias. Além do mais a receita ficou no livro da vovó que foi pro lixo depois que ela foi internada num asilo público. Cinderela engravidou do padastro e espera na fila da Santa Casa para fazer sua primeira consulta de pré-natal. Ela está no sétimo mês. Tudo errado. A fada madrinha não anda mais com sua varinha de condão porque tem medo dos assaltos. Um dia ela encontrou a Cinderela numa parada de ônibus mas não pôde fazer nada. Estava sem a varinha e tão desconfiada do sujeito mal encarado à sua esquerda que não conseguia prestar atenção em mais nada. Na verdade mal reconheceu Cinderela daquele jeito, grávida, triste e sem esperanças. Se bem que o que poderia ter feito: o príncipe nem mora mais lá...

 

Esta sopa ficou pronta às 7:46 PM

 



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