sopademim


tens algo a dizer?

sexta-feira, abril 02, 2004

O FILHO


Eu fui daqueles filhos que requerem uma dose elevada de energia dos pais. Eu não dormia de noite, eu não dormia de dia. Eu não chorava, mas não dormia. Eu não parava. Já maiorzinho, quando não estava inventando estradas de rali no jardim lá de casa, munido de pá e carregando pedrinhas da rua para fazer as canchas de cascalho das curvas, estava montando robôs com caixas de sapato e a sirene da ambulância a pilha que eu desmanchei pra colocar no peito do dito... Obviamente a ambulância nunca mais foi a mesma, mas do robô até foto temos. As pedrinhas ficaram lá no gramado e lembro de uns dias depois ouvir os primeiros palavrões feios da minha vida, quando o jardineiro foi consertar o meu estrago no jardim e cortar a grama e foi metralhado pelas pedrinhas que saiam de baixo da máquina... Foi algo do tipo: P.Q.P. quem foi o F.D.P. de encheu o gramado dessas P. pedras do C.! Fiquei sem entender e fui perguntar pra mãe o que queria dizer aquilo tudo. Não lembro da resposta. Talvez porque ela não tenha respondido... sabiamente.
Eu também brincava de esconde-esconde dentro de casa nos dias de chuva. Alguma coisa relativa à minha paixão por televisão me fazia esconder o meu irmão dentro de um armário vermelho e deixá-lo lá, fingindo que procurava-o nos intervalos da sessão da tarde (ou seja lá o que eu assistia...) sem nunca, nunca encontrá-lo. Hoje tenho a impressão de que ele passava horas no tal armário, mas sei que o tempo prás crianças tem uma outra dimensão, então pode ser que ele ficava lá só alguns minutos. Sei lá... Era o suficiente pra eu me achar muito esperto, e ver TV sozinho.
Ele também foi vítima de muitas das minhas maldades - estou achando que eu era uma criança ruim... - como provar aguá sanitária, pular da sacada (eu prometi que pulava depois, mas na verdade só queria saber se ele sobreviveria e nunca pulei, mas ele viveu.) e finalmente, num golpe de mestre, fiz o favor de ajudá-lo a descobrir que seria doado para a "sociedade de caridade para famílias sem filhos". Nesse dia, após contar-lhe a triste notícia, eu ajudei-o a arrumar sua malinha planejamos sua fuga de casa, a fim de livrá-lo da possibilidade de ser doado a outra família. Quando minha mãe chegou em casa estavamos nos despedindo na porta. Ele de mochilinha nas costas, chorando, com uma mapa da casa da vó na mão. Eu me lembro que estava eufórico: pai e mão só pra mim, tv só pra mim, todos os playmobils só pra mim.... Eu não me lembro das sequências seguintes, mas me lembro de ser obrigado a pedir desculpas pra ele depois de passar três semanas trancado no banheiro fazendo massinha de papel higiênico com a água da pia. Essa dimensão de tempo para crianças deveria ser melhor explorada... O momento culminante foi o da dissolução eterna da "sociedade de caridade para famílias sem filhos". Eu, como diretor fundador tive que comunicar a ele que a sociedade não existia mais. Vejam só, mais uma instituição benemerente riscada do mapa por interesses alheios. O que essas pessoas tem contra o socialismo?
Se eu tivesse um filho como eu, eu iria rir muito, entre uma crise de dor de cabeça e outra. Ou quando ele (eu) estivesse trancado na jaulinha.

 

Esta sopa ficou pronta às 1:56 PM

 



SOPA






Eu estou no Blog List





Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons License.

 

This page is powered by Blogger. Isn't yours?


Divulgue o seu blog!