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sexta-feira, julho 16, 2004

FICÇÃO: BATATA FRITA

"O sinal estava vermelho, o carro parado ali na sua frente parecia que ia derreter-se e sumir, escorrendo pelo bueiro na forma de uma geléia prateada, sob o sol escaldante que se multiplicava nos vidros espelhados dos prédios ao redor. O telefone caiu no chão quando aquela onda lhe atingiu e seus braços perderam a força. A multidão ao seu redor, ansiosa, respirava em uníssono e protestava contra o calor sem dizer uma única palavra. Até falar estava difícil naquele dia. O ar pesava e a visão dos pés tocando o asfalto amolecido era torturante. A madame dentro do veículo parecia alheia ao sofrimento dos pedestres enquanto esperava pacientemente pela abertura do sinal. O tempo parecia parado naquela sexta-feira às três da tarde. A luz verde encheu de alívio a pequena multidão que se aglomerara na esquina aguardando o tempo, que para ele não mais passava, passar. A madame acelerou e desapareceu numa esquina qualquer. Ele ficou ali, parado, sem se dar conta de que o sinal já estava fechado novamente. O olhar fixo no chão deixava transparecer um nada tão grande, um vazio tão avassalador que chegou a lhe fazer estremecer. As pequenas formigas que lutavam para carregar um framento de batata frita em direção a uma fresta na calçada seguiam seu percurso arriscado, entre os pés das pessoas, em seu passo lento. O trabalho dos diminutos insetos negros passou desapercebido em frente aos olhos dele, assim como passou o segundo grupo de pessoas que atravessou a avenida assim que o sinal abriu pela segunda vez. Nem o esbarrão que o executivo apressado lhe deu por acidente, seguido de um automático e desinteressado pedido de desculpas lhe tiraram do transe. Era claro que ele não estava ali, mas ninguém percebia isso. Ninguém percebia ninguém. Ninguém percebia. Cada qual seguia seu passo apressado, seu ritmo frenético de final de maratona. O único objetivo de cada um daqueles seres era terminar a semana e só. O fragmento de batata frita desapareceu na fresta entre as pedras amarelas do cordão da calçada. Ninguém viu, muito menos ele. A dor era grande demais e ele estava fechado para o mundo que seguia. Ficou ali sentindo tudo sozinho, impassível e alheio a qualquer estímulo externo. O reflexo do sol na pintura branca sobre o asfalto iluminava seu rosto inexpressivo. A brisa morna fez com que os cabelos finos que lhe cobriam os olhos revoassem e apontassem o céu, como que num aceno, um inútil pedido de ajuda. O telefone no chão tocou novamente. Não houve reação. A primeira lágrima verteu e desprendeu-se da ponta do seu nariz bem desenhado percorrendo lentamente o ar denso daquela tarde indefinida. A lágrima tocou o solo, evaporando-se no ar em segundos como se a dor de um homem pudesse também ser ignorada pelo somatório de fatores que transformam o cotidiano em algo mosntruosamente arrebatador.
O dia mais triste de sua vida havia chegado e ele não sabia como conseguia manter-se, ainda, de pé."      


 

Esta sopa ficou pronta às 3:15 PM

 



SOPA






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