sopademim


tens algo a dizer?

domingo, julho 18, 2004

FICÇÃO: CONTAS OU PONTAS

"Quando ela ouviu a sirene do alarme de incêndio e abriu os olhos, o arrependimento lhe bateu. Ela tinha ouvido um estrondo algum tempo atrás e percebera que o calor lhe fazia suar em bicas em meio aos lençóis que ainda teimavam em cobri-la, mas ela não imaginou que o estrondo fosse ali, na casa dela. E também não se ocupou de questionar o calor excessivo que fazia naquele dia de Janeiro, em que a neve se acumulava lentamente na pequena janela que trazia o pálido sol da tarde atá a sua cama.
Ou não deu atenção o suficiente.
Sem coragem de olhar para o relógio ela levantou da cama e saiu recolhendo as roupas espalhadas que formavam uma trilha até a porta de entrada da casa. Durante o trajeto ela começou a pensar - com os poucos neurônios que agora acordavam - que aquele calor todo não podia ser normal. No hall de entrada ela olhou o mostrador da calefação e reparou que a alça do seu sutiã estava pendurada ali, e mostrava que mais uma vez ela tinha chego em casa com frio e mudado a regulagem da temperatura, transformando a casa numa sauna seca.
A campainha tocou em instantes e quando ela espiou pela fresta da porta e deu de cara com o superintendente, o arrependimento pelos excessos da noite anterior - os que ela recordava, agora, em flashes - se travestiu de vergonha da mais pura. Ele olhou para ela como se já soubesse do que se tratava e solicitou, sem muita paciência, que ela desligasse o sistema de aquecimento que mais uma vez havia causado uma explosão na caldeira do prédio. Ele avisou que infelizmente aquele conserto seria incluído no próximo aluguel dela, conforme combinado, e que esperava que dessa forma ela se tornasse mais atenta. Ficara óbvio, pela cara amassada, os cabelos desgrenhados e a pilha de roupas amassadas na qual ela estava abraçada, que a causa da desatenção era o 'barril' de álcool que ela havia ingerido na noite anterior. E isso que o superintendente não ouvia a performance particular que o Olodum fazia dentro da cabeça da menina, apesar de ele ter reparado que que ela comprimia os olhos numa expressão de dor a cada palavra que ele dizia.
Esta foi, segundo ela mesma, a pior enxaqueca pós-porre em uma sexta-feira. Em Janeiro.
Mas mesmo assim, parecendo uma doida seminua em dia de faxina ela estava linda. Desde pequena ela sempre teve e um charme, uma pose e uma delicadeza que faziam com que mesmo nas situações mais absurdas ela causasse admiração por sua simples presença. Talvez por isso, sempre lutara para mostrar que era profissionalmente competente, e que não dependia do seu visual para conquistar o mundo. Fora para Nova York a fim de mostrar isso,, segundo ela numa terra estranha e cheia de mulheres maravilhosas.
Depois de fechar a porta e desligar a calefação ela reparou no bilhete que ela mesma tinha escrito e colado com fita adesiva vermelha acima do botão da temperatura, no último dia em que a sauna funcionou durante dez horas, vitimando o seu pequeno vaso com trevos que ficava na janela da sala, ao lado da saída de ar, e transformando-o em materia prima para pout-pourri. O bilhete dizia: NÃO AUMENTAR A TEMPERATURA, MESMO QUE VOCÊ ESTEJA BÊBADA DE NOVO!
Aquilo já tinha acontecido várias vezes, durante vários invernos. E algumas vezes, nos poucos meses que durara aquele inverno de 2004. Ela chegava em casa bêbada, morrendo de frio depois de ter perambulado sem rumo pelas ruas de Nova York durante horas, nas suas noitadas intermináveis e ao entrar em casa, descordenadamente, girava o botão até a temperatura máxima enquanto tirava o sutiã e pendurava ali no botãozinho. Era como se fosse um ritual. E ela achava a cena sensual, mesmo que estivesse chegando em casa sozinha - como fazia há meses. Ela se imaginava muito independente por poder deixar tudo atirado pela casa,controlar sua própria calefação e pendurar sua lingerie onde bem entendesse. Quando bebia, ela perdia o senso, o bom e o ruim...
Depois de tomar um banho, dois comprimidos para enxaqueca e de organizar a bagunça, ela aproveitou que ainda tinha alguns minutos antes de sair para o trabalho, serviu uma xícara de chá verde e foi colocar a correspondência em dia. Parecia até outra pessoa.
Lembrou que fazia quase um mês que Sam não escrevia e ela estava curiosa pelas novidades de São Paulo. Por algum motivo, mesmo depois de já ter passado dez anos fora, longe dos amigos, ela sentia uma necessidade imensa de manter-se informada sobre a vida de cada um deles. Os amigos simbolizavam tudo que ela tinha de melhor e faziam com que aquela independência conquistada a tanto custo e que ela valorizava com tanta energia se tornasse um pouco mais concreta, um pouco menos solitária e ligeiramente sensata. Sam era a correspondente oficial, e fazia seus relatórios com muito bom humor e sempre gabando-se de não estar fazendo fofoca, apenas relatando fatos.
Enquanto tomava o chá e separava as contas das propagandas, lembrou que estava com trinta e dois anos e esse pensamento fez com que ela parasse de remexer a correspondência e olhasse perdidamente, com um olhar parado e meio fora de foco, para seus cabelos que tocavam de leve a conta do telefone. Lembrou de Sam, dos velhos amigos de quem ela sabia tudo mas que raramente escreviam, lembrou dos novos amigos de Nova York, alucinados, apressados e distantes, lembrou do pequeno hamster, seu companheiro nos primeiros meses na grande maçã, e que ela dera de presente ao menino sueco, filho do vizinho de cima, que lembrava o filho de Sam, que ela nunca vira ao vivo.
Por alguns segundos ela se sentiu melancólica mas quando focou o olhar e percebeu uma ponta dupla num dos fios do seu cabelo, deu um pulo e um pequeno grito histérico com sua voz rouca, e correu desabaladamente para o banheiro para pegar uma tesoura, a solução de silicone e consertar aquele desastre antes que fosse tarde."

 

Esta sopa ficou pronta às 1:38 PM

 



SOPA






Eu estou no Blog List





Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons License.

 

This page is powered by Blogger. Isn't yours?


Divulgue o seu blog!