sopademim


tens algo a dizer?

terça-feira, agosto 31, 2004

FICÇÃO: ORNAMENTAL

"Naquela tarde ela prometera a si mesma chegar ao escritório mais cedo. Apesar do porre da noite anterior, e também por causa dele, ela queria passar no salão de beleza para fazer as unhas e dar um trato no visual. Não era o estilo dela, mas ela achava que a ocasião merecia. Naquela tarde o coordenador da nova campanha de marketing da famosa grife de jóias seria finalmente nominado e ela estava ansiosa. Ela queria aquela conta, apesar de não gostar do estilo pesado do produto que o cliente vendia. Ela dizia que isso não vinha ao caso, como quem tentasse convencer a si mesma, de que aquilo era um mero detalhe, e que por mais que eles estivessem acabando com materias nobres e transformando-os em horrendos ornamentos, eles ainda eram nobres. (O que significava: passíveis de serem derretidos e transformados em coisas mais belas.) As peças eram todas enormes e não era a toa que custavam uma fortuna, apesar do exremo mau gosto, fruto dos exageros que viraram marca registrada da estilista da grife. Ela queria aquela conta, afinal, ia rolar uma grana considerável e os anúncios da nova campanha já estavam planejados para os melhores outdoors de Nova York, Paris e Tókio e páginas e páginas nas melhores revistas do mundo. Ela estava segura de que a vez dela chegara e de que o sucesso estava lhe chamando para dançar. Do alto de suas botas altíssimas, vestindo um terno preto discreto e com o cabelo preso ela se sentia saída de um comercial de refrigerante diet, daqueles onde mulheres precisam provar que podem e que sabem. Não era essa a intenção, mas entre as opções que ela tinha, essa lhe pareceu a melhor.
A reunião prometia ser breve e o coordenador seria anunciado pelo diretor da agência, que mostraria o projeto de abertura da nova campanha, desenvolvido pelo candidato escolhido. A peça que ela havia desenvolvido, com uma cena que ela mesma tinha produzido e fotografado, mostrava um enorme colar de diamantes, de valor inconcebível, sendo admirado de forma semi-proibida, por um pequeno quinteto de freiras, às escondidas, numa sala escura de um convento distante. Era uma foto bonita e contrastante, com uma iluminação impressionista e com o ar controverso que tinha tudo para conquistar o cliente, o público e levar a conta. Quando olhava o seu anúncio ela imaginava as cinco freiras orgulhosas do seu talento, orando por ela.
A reunião deveria começar as cinco horas em ponto. A sala estava clara e os representantes das quatro equipes de criação estavam presentes, assim como o cliente e a direção da agência. O clima era de festa, e para ela mais ainda, já que estava confiante de sua capacidade. No momento em que o anúncio vencedor foi apresentado ela precisou manter a compostura e a pose por muito mais tempo do que imaginava. O seu senso crítico era aguçado demais e aquilo estava lhe colocando no limite. A montagem do anel de diamantes sobre uma nuvem de algodão num céu matinal lembrava mais um anúncio de cream-cheese do que qualquer outra coisa. Era horrendo como as jóias que o cliente queria vender para meia dúzia de bilhardários e ela não sabe de onde tirou a cara de pau para sorrir com simpatia ao ver aquela obscenidade. O protocolo necessitava que todos aplaudissem, e que, sorrindo discretamente, concluíssem que a autoria do anúncio era do único colega que não fizesse o mesmo. Quer dizer, que não aplaudisse e que sorrisse desbragaladamente. O mistério logo foi revelado, e ela precisou de mais fibra do que imaginava ter para continuar aplaudindo a jovem, recém-formada, e já podre de rica, filha do diretor da agência. Ela só conseguia pensar nos 15 minutos que a menina de 21 anos devia ter perdido na frente de um editor de imagens fazendo aquela montagem tosca inspirada num comercial de fraldas descartáveis. A raiva tomou conta dela. Mas ela continuou sorrindo, cumprimentou a herdeira da agência com um aceno e uma gentil flexão com a cabeça. E aguardou ansiosa o fim daquela tortura. Ela queria mostrar a todos o seu anúncio, ela sabia que era o melhor, ela estava possuída por um sentimento de injustiça e naquele instante parecia que todo o seu trajeto profissional não levara a nada. Enquanto olhava aquele anúncio, ela imaginou as cinco freiras do seu anúncio chorando, sapateando e se auto-flagelando de tanta raiva, por ela. Ela imaginou a colega de trabalho de fraldas, presa numa solitária de um convento distante, incomunicável, de castigo por toda a eternidade, sem poder ver nuvens ou comer cream-cheese. Ela se sentiu mal por estar imaginando tudo isso e resolveu fazer o que sabia fazer melhor. Na primeira oportunidade levantou-se educadamente, pediu licença com toda a graça e educação que os anos lhe deram, e retirou-se ornamentalmente, como quem não se importa e já esqueceu o que se passou e tem mil outras coisas a fazer.
Sentada no seu escritório, chorando de raiva, ela imaginou as cinco freiras rindo da cara dela com um ar malévolo, e resolveu tomar uma atitude."

 

Esta sopa ficou pronta às 7:39 PM

 



SOPA






Eu estou no Blog List





Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons License.

 

This page is powered by Blogger. Isn't yours?


Divulgue o seu blog!