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terça-feira, janeiro 18, 2005

O TEXTO DO MARCELO FIRPO,

SOBRE O QUAL EU COMENTEI ONTEM
Com a devida autorização do Marcelo (valeu cara), aqui vai:

"SANTIAGO
Em primeira pessoa, de primeira viagem
por Marcelo Firpo
[ 25/03/2004 ]

Por onde se começa um relato desses? Pela manhã do dia, quando o simples fato de se acordar mais cedo do que de costume para se fazer um exame aparentemente desencadeia um processo de parto? Pelo meio-dia, quando, ao chegar em casa, ouço simplesmente a frase "a bolsa rompeu" e me sinto num filme? Pela ida para o hospital, com todas as coisas demonstrando uma nitidez quase insuportável? Ou talvez pelo nascimento propriamente dito, a mão da médica buscando alguma coisa dentro da barriga aberta da Giselle e saindo de lá com essa coisa, vermelha, enrugada, cheia de cabelo e estranhamente familiar? Não sei. Acho melhor começar do começo e ir avançando. Não que faça mais sentido, mas por ser mais fácil mesmo.


De manhã. Em vez de acordar e ir pro meu trabalho, deixando a Giselle e seu barrigão dormindo como tenho feito nas últimas semanas, faço força para acordá-la, obedecendo a um pedido feito na noite anterior. Ela tem um exame marcado para as 9 horas, não deu pra marcar mais tarde. Mais dia menos dia essa criança nasce, então é melhor fazer logo.

A duríssimas penas ela carrega seu barrigão até o banheiro, cozinha, roupeiro, sempre comigo empurrando atrás, vou dar uma carona. Rua. Ao atravessar, ela começa a sentir uma série de contrações. Será que é hoje? Quarta, 3 de março, aniversário do Mojo, bom augúrio. Eu tinha sonhado que ia ser ontem.


Deixo-a na frente do laboratório com as recomendações de sempre, "qualquer coisa, liga."


No trabalho, tenho uns cinco problemas pra resolver, mas não consigo entrar em nenhum deles. É como se eu soubesse que ia ser perda de tempo, que o que quer que eu fosse começar agora não ia terminar mesmo.


Ela liga: "Acho que é hoje mesmo, viu?" As duas mães, minha e dela, já foram chamadas, fico tranqüilo, organizando coisas. Chego em casa depois da uma e a primeira coisa que ouço ao abrir a porta é "A bolsa estourou." Uma suave irrealidade começa a tomar conta das coisas. Munidos de toalhas, descemos e vamos até o consultório da médica, e de lá pro hospital.


Tinha uma reunião às 14:30 e outra às 15:00. Depois de deixar Giselle e mãe no hospital, dou uma última passada no trabalho pra passar a bola pra alguém e começo a comunicar a esmo que o Santiago está pra nascer. As pessoas esperam que eu fique um pouco mais nervoso do que eu estou. Estou apressado, mas calmo, curtindo a situação toda. É legal chegar pra alguém e dizer: "Olha, preciso que tu me substitua nessa reunião, meu filho está nascendo neste exato momento, essas crianças, sabe como é..."


Na volta pro hospital é que começa o estranho fenômeno: uma sensação de que tudo parece mais vivo, mais nítido, mais forte. Uma jamanta carregada de carros cruza na minha frente em plena 24 de Outubro e eu perco vários segundos olhando maravilhado para a brutalidade daquilo, caçamba, cabine, pneus, carroceria, carros, correntes, parafusos, nunca olhei pra uma jamanta desse jeito. É como se fizesse sol depois de meses e meses de dias nublados, as cores gritam, nada parece fugir à minha percepção.


Hospital, o mesmo em que eu nasci. Depois de esperarmos em vão durante 3 horas por uma série de contrações fortes o bastante para causar uma dilatação, a médica decide por uma cesariana. Ficar mais de 12 horas com a bolsa rompida é perigoso, por causa do risco de infecções.


Giselle fica um pouco nervosa com a idéia de cirurgia e anestesia, ela não tem muitas no currículo. Digo que já fiz várias e acho até divertido, mas ela não se convence muito. Pelo menos vou poder ficar do lado dela na hora, falando besteira.


Rapidamente aparecem o anestesista e o resto da equipe, e vamos para a sala. Me sinto bem com o avental, mas a máscara me incomoda um pouco. Comento que começo a entender o porquê de usarem a palavra "parto" para coisas complicadas: já são 8 da noite.


À medida em que o processo avança, uma certa introspecção vai tomando conta de mim. Na verdade, sou dois: na superfície, um de nós conversa com a Giselle e responde às brincadeiras sobre Inter e Grêmio do anestesista; mais fundo, o outro espera, consciente de que a minha vida está para passar por um momento extremo, uma culminância.


Tem uma cortina protegendo a incisão do olhar da Giselle. Digo pra equipe que quero ver o bebê saindo da barriga e o anestesista brinca que se tiver que segurar pai desmaiando vai cobrar mais caro. Desmaiar? Perder um momento desses? Sem chance, tenho certeza disso quando levanto a cabeça para espiar do outro lado da cortina, bem a tempo de ver a médica buscar algo lá dentro da barriga e trazer para fora.
Cabelos. A primeira coisa que eu vejo é uma cabeça cheia de cabelos. Depois penso em vermelho. A criança está toda coberta por uma golesma esbranquiçada, mas é possível notar que por baixo a pele é absurdamente vermelha. Ele parece muito, muito brabo, quase peço pra colocarem de volta no lugar. Aí eu finalmente enxergo o rosto: olhos bem fechados, boca aberta num choro que começa a chegar aos meus ouvidos, um nariz minúsculo e grandes bochechas.


Eles levam o bebê para a sala ao lado, eu vou junto, pesam e medem, depois me dão para segurar. Tenho consciência de que esta é a primeira vez que eu faço isso. Pegar o meu filho no colo. Acho que é neste momento que cai de vez a ficha: sou o pai desse guri.


Com o Santiago no colo, volto pra sala de parto, onde Giselle chora na mesa de cirurgia. Coloco ele com todo o cuidado na frente do rosto dela. Não tenho como descrever essa cena sem ser muito piegas, então prefiro pular. Me limito a dizer que ela conversa com ele, e eu penso que todos os sacrifícios que ela fez nos últimos meses finalmente fazem sentido. Toma que o filho é nosso.


Depois disso eu levo a criança, ainda no meu colo, até a vitrine da maternidade, onde duas famílias aguardam. Eu achei que o grande momento tinha sido o nascimento, mas chegar na frente do vidro e ver todos explodindo de alegria também é muito forte. Olho nos olhos de cada um agora, mostrando o Santiago. Me demoro um pouco mais na minha mãe, o nome da criança é uma homenagem a uma das melhores pessoas que eu já conheci nessa vida, pai dela, meu avô. Onde estão as dúvidas que senti nos últimos meses? Onde está a insegurança, o medo de simplesmente não estar preparado pra ser pai? Converso com meu filho, sou o pai dele agora. Coloco o bebê sobre um bercinho, à vista de todos, e é então que começam os problemas: o pediatra me diz que a criança está fazendo força demais para respirar, e que se continuar assim vai ter que levar para o CTI, mas que ele não quer isso, prefere esperar um pouco.


Só aí é que me dou conta de que o final de cada expiração, muito curta, vem acompanhado de um pequeno gemido intermitente, doído. Ele não chora, talvez até porque todas as forças estejam concentradas nessa respiração sofrida, brigada. O médico aspira as secreções da boca e nariz, tentando desobstruir as vias respiratórias, mas não adianta. Calculo que ele respire umas 70 vezes por minuto, sempre gemendo. Fico ali com ele, sofrendo junto, puxando o ar junto, torcendo para que a situação se reverta nos próximos minutos, que de uma hora pra outra ele consiga respirar normalmente e possa ser levado para perto da mãe, mas isso não acontece. Depois de um período de tempo que calculo em torno de 40 minutos, o médico me diz que o melhor é o Santiago passar um tempinho no CTI. Fico um pouco triste: queria muito que ele fosse para perto da mãe, sentisse de novo seu cheiro, as batidas do seu coração, seu calor, e dessa forma se acalmassem ambos. Mas não.


No CTI, me informam rapidamente das regrinhas do lugar e me avisam que posso entrar e sair a hora que quiser. Na verdade, sou a única pessoa da família que pode fazer isso, já que a mãe não consegue nem sentar, com a barriga toda costurada. A decisão de passar a noite por lá vem ao natural.


A noite é uma sucessão de idas e vindas, da salinha de espera com um sofá minúsculo de 2 lugares e guardas de madeira estrategicamente colocadas para que não se consiga deitar ao CTI propriamente dito, e vice-versa.


No começo toco bastante nele, converso e me comovo com a mais insignificante expressão facial, mas ao longo da noite me dou conta que isso o deixa mais agitado, então procuro me conter. Ele está num berço, embaixo de uma estufa, com soro e com a cabeça dentro de uma campânula transparente, que oferece uma concentração maior de oxigênio, 40%, do que a que normalmente respiramos, 21%. Parece um astronautinha.


Nas paredes do corredor do CTI, quadrinhos emoldurados, presente de pais agradecidos, contam a história de crianças que ficaram vários meses naquele lugar. Geralmente são compostos de uma foto do recém-nascido todo erradinho, magro e cheio de tubos e de outra, com o bebê em casa, sadio e sorridente. Os textos são escritos pelos pais, muitas vezes simulando a narração da própria criança: "Oi, meu nome é Tomás, nasci com 1600g, tive tal e tal complicação, passei 6 meses aqui, mas agora estou bem, em casa, com 4200g, graças ao empenho das enfermeiras etc etc etc". Leio todos eles, e uns dois ou três conseguem me atingir como uma voadora na pleura. Um deles começa com uma citação do Churchill: "Nunca, nunca, nunca se renda."


Quando me dou conta, o bar do hospital já fechou e tudo o que eu tenho para comer são duas trufas de chocolate. Tento dormir, não consigo, volto mais algumas vezes para o CTI e lá pelas três da manhã o cansaço me vence. São quatro e meia quando me acordo, depois disso não durmo mais.


Durante a noite, seguro a mãozinha dele várias vezes, sentindo o apertão instantâneo dos dedinhos que se fecham ao redor do meu dedo. Sei que é um espasmo natural dos bebês, sei que não é consciente, sei que ele seguraria com a mesma urgência o dedo de qualquer pessoa nestas condições, do pior criminoso do mundo até, mas não é ele que está aqui, sou eu.


De manhã Santiago tem uma ligeira piora, eles colocam um respiradorzinho direto no nariz, e eu sou aconselhado a ir para casa, dar uma descansada. Corcoveio um pouco mas acabo indo, e ao sair do hospital percebo outro fenômeno interessante: depois de uma noite em claro no CTI, ouvindo o choro e os gemidos do meu filho e de vários outros bebês, começo a ouvi-los por toda a parte. Abro uma torneira e o rangido se assemelha a bebê resmungando. Um carro freia ao longe e o som se assemelha muito a um começo de choro. Uma porta rangendo lembra um gemido. É como se os choros e ruídos de bebê já estivessem embutidos em todos os sons do dia-a-dia, mas só agora, com os ouvidos devidamente afinados, eu os percebesse.


Durmo.

Muito.


No fim da tarde volto ao hospital e Giselle finalmente consegue sentar numa cadeira de rodas. Tudo o que ela quer é visitar o filho. Desde o nascimento, no dia anterior, ela não passou mais do que dois minutos junto dele, e é tocante vê-los agora. Ele já está numa incubadora, ela abre a portinha, acarinha a sua cabeça e fala coisas simples e cheias de carinho. Ela repete várias vezes, olhos cheios d´água, a frase "Como ele é querido!", mas na verdade é como se dissesse "como ele é forte, como ele é corajoso, como ele luta pra respirar, pra ficar com a gente, pra ir pra nossa casa". Comovo.


Os dias vão passando, Santiago vai melhorando, a concentração de oxigênio fornecida para ele vai se aproximando dos 21%. Ele fica mais ativo, resmunga mais, arranca o soro da mão, tenta puxar a sonda da boca. Meu guri.


Cerca de uma semana depois do parto ele ganha alta e aí começa uma nova história, fraldas, mamadas no meio da noite, colos para arrotar, eventuais engasgos, preocupações-de-pais-de-primeira-viagem-que-um-dia-vão-ser-motivo-de-boas-risadas-mas-certamente-não agora e pequenas alegrias.


Quando ele sorri, por exemplo, eu me desmonto, mesmo sabendo que este ainda não é um sorriso consciente, social, que é mais um espasmo, que tem a mesma natureza de um peido ou de um arroto. Talvez seja justamente isso, a aleatoriedade da coisa toda, o pequeno milagre do teu filho sorrir, não necessariamente para ti, mas ao alcance dos teus olhos, que seja o mais bonito de tudo. A vida é caótica. Um ano atrás a última coisa que eu queria era ser pai; hoje me sinto de certa forma agraciado, quase salvo, por esta oportunidade.


Uma última lembrança, ainda da época em que mãe e filho estavam no hospital e eu me acordava de madrugada para ir vê-los: são cinco horas da manhã, dirijo pela 24 e ouço a Ipanema. O refrão de um rap pergunta: "what´s love?"


Por alguns instantes eu acho que consigo responder.

Marcelo Firpo - publicitário, DJ e papai"

 

Esta sopa ficou pronta às 10:34 AM

 



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